Carta a um fanático

Acho que minha história vale a pena de ser contada. Recebi um e-mail de um rapaz que formou comigo no curso de Direito, em uma universidade pública, sobre um abaixo-assinado contra o projeto de lei nº. 122, que legaliza a união homoafetiva e criminaliza a homofobia, sob o pretexto de suposta proteção da família brasileira. Não vou expor o que ele escreveu; publicarei apenas as minhas respostas, que imagino que poderão fornecer uma idéia do que ele redigiu.

Resposta 1:

“Muito me impressiona que uma pessoa aparentemente instruída seja capaz de endossar uma manifestação como essa.
Entretanto, já que o cristianismo foi abordado, faço a seguinte indagação: o discurso de Jesus Cristo não foi sempre pela igualdade e amor ao próximo?
Serei mais simplória ainda: no que a união homoafetiva interfere na vida dos heteroafetivos?
Responda a essas questões para si mesmo sem falso moralismo e sem recalque.
Crie seus filhos com valores morais que não os levem a julgar o próximo como o próprio Jesus apregoou e a família brasileira será preservada.
E, por favor, não me mande mais emails, nem com esse tipo de conteúdo e nem outros.
Obrigada."

Resposta 2:

“Sugiro, ___, que você deixe de ler o Velho Testamento e passe a ler mais o Novo, já que, como cristão, você segue os ensinamentos de Jesus Cristo, sob a NOVA Aliança. Se você realmente pensa que Jesus apoiaria a dizimação de Sodoma e Gomorra, você deve rever a sua crença.
Sob outra vertente, digo-lhe que como jurista você deveria saber que o Direito deve se adaptar aos fatos e não a valores morais e religiosos. A laicidade do Estado promove a igualdade na atuação estatal. Ademais, seres humanos não devem ser privados de direitos por sua orientação sexual. Portanto, você deve fechar um pouco o Velho Testamento e ler mais a Constituição Federal.
As famílias estão sendo destruídas pela ausência de educação fornecida pelos pais e ensino público, não pela evolução dos valores morais.
O cristianismo é a filosofia do amor e pessoas como você estão disseminando o ódio. O que Jesus diria das pessoas que usam seus ensinamentos para discriminar e repudiar o próximo?”

Resposta 3:

“Eu não disse nada a respeito de negar o Velho Testamento; eu ‘disse’ que Jesus não perpetuou as antigas práticas ou no Novo Testamento existe alguma menção à escravatura, à submissão feminina, ao sacrifício humano? Jesus ensinou a não jogar pedra no telhado alheio, lembra?
Em momento nenhum, eu disse que você não tem o direito de expressar sua opinião e isso você deve à Constituição, à evolução de valores morais e sociais, e não à Bíblia Sagrada.
Ainda que você mantenha seu pensamento sobre o que é ou não a homoafetividade, ela não deixará de existir. Isso porque NÃO se trata de opção ou você acha que as pessoas acham divertido serem rechaçadas e humilhadas, como negros, índios e mulheres o são todo dia?
Diga-me: você escolheu nascer homem, "não branco", heteroafetivo e de classe média, num país que não te dá segurança, educação, nem cultura? A resposta é "não".
Sendo assim, não se preocupe se seus filhos serão influenciados por homoafetivos - ou eles nascerão assim ou não. Ou por acaso você por ter amigos homoafetivos já se apaixonou por homens?
Outra coisa que você esquece é que os homoafetivos têm sentimentos - amor - como os heteroafetivos. Da mesma forma que relacionamentos entre heteroafetivos não é apenas sobre sexo, os homoafetivos também não ou por que outro motivo eles buscariam a legitimação de suas uniões?! Em países onde o casamento homoafetivo é legalizado, a taxa de divórcio entre casais de pessoas do mesmo sexo chega a ser 5 vezes menor que entre casais heteroafetivos. Nos EUA, a taxa de divórcio entre casais de pessoas de sexos diferentes é de 50% e é a nação mais puritana - e falso-moralista - do mundo.
Muito me assusta que seus amigos homoafetivos mantenham qualquer tipo de convivência com você. Se você lhes tem qualquer afeto, como pode apoiar um movimento que lhes nega direitos que você, por ter tido a "sorte" de ter nascido heteroafetivo, possui desde sempre? Isso que é plena falta de amizade.
É muito triste, ___, que os ditos cristãos, que apregoam tanto o amor ao próximo, esquecem essa ideologia quando se trata do que duas pessoas fazem dentro de quatro paredes, o que não diz respeito a ninguém.
Eu, apesar de ser branca, de classe média, heteroafetiva, sou completamente a favor da inclusão social seja do gay, do negro, do pobre, do deficiente. Eu como mulher não posso andar na rua sem ser assediada, porque a misoginia ainda reina nesse País. O negro ainda sofre com o preconceito completamente desarrazoado. O pobre ainda sofre nas mãos dos reacionários. O deficiente ainda é chamado de aleijado ou retardado. O ateu ainda é tachado de endemoninhado e o gay, bem, o gay não tem direito a nada, a não ser de se esconder dos "moralmente direitos".
O que lhe falta, ___, é um pouco de EMPATIA. Você já pensou se você tivesse nascido de uma forma que o marginalizasse, gay, negro, pobre e/ou deficiente? Aposto que você nunca deve ter pensado por esse lado, apesar de o cristianismo em si ser todo fundado no amor ao próximo que nada mais é que pura e simples empatia.
Não te odeio de forma alguma, mas eu tenho pena da sua visão tão estreita. É realmente triste que uma pessoa instruída ainda defenda uma espécie de Apartheid mitigado, porque a cerca que envolve as pessoas que são privadas dos direitos não é de concreto, mas é muito mais real e dura. Há alguns séculos, para os religiosos os índios e os negros não tinham alma. Para os escravagistas, a abolição da escravatura iria provocar a decadência da sociedade. Há alguns anos, o trabalho feminino destruiria a família. Nos anos 70, nos EUA existia uma lei que proibia os deficientes físicos de saírem nas ruas para não incomodarem os ditos "normais". A criminalização do racismo no Brasil foi um absurdo para os conservadores, pois segundo eles não existe racismo aqui.
É com esperança que lhe digo que você, ___, possui a opção de mudar de idéia, de coração e melhorar sua maneira de enxergar o mundo, pois você faz parte do grupo dominante. O homoafetivo e as demais minorias que citei apenas possuem a opção de lutar por seus direitos e NADA MAIS.”

Gostaria de esclarecer que sou ateísta e, portanto, não acredito em Deus nem na Bíblia Sagrada, mas tenho um restrito conhecimento, pois fui criada numa família e em colégios religiosos. Entretanto em momento algum mencionei esse fato ao Fulano, uma vez que por se tratar de um radical os meus argumentos perderiam a validade desde o primeiro momento. Essa é a minha justificativa, suficiente ou não para alguns. (Acho que essa omissão intencional e a utilização do argumento de outrem contra este foram técnicas que aprendi estagiando em escritório advocatício.)

Coloco essa discussão em pauta não por acreditar que meus argumentos são absolutamente certos, mas porque é um debate necessário que deve ser realizado a fim de se promover a mencionada evolução de valores humanos.